(um pouco mais)



Era domingo e eu estava de bom humor. A água fervia pra virar café. Lembro disso. A poltrona ansiava completar a sua maciez na minha, e eu na dela. De sorriso fresco, para abrir o jornal, a primeira notícia: “o pobre já perdeu”. Episódio ruim, mas, não era o caso.
Percorri alguns cadernos e parei para passar o café. Eu tenho cafeteira, mas decidi por algo mais artesanal naquela manhã. Não deu certo. Vazou. Tudo bem, a Joana iria chegar já, para limpar. Assim, com o pouco de água que sobrou fiz alguns centímetros de chá, os quais me dariam resultados simultâneos para a pele e meu organismo. Além do mais, era mesmo mais elegante ler notícias assim.
Quando fui para os braços dela, a poltrona, Clóvis estava lá, adequado ao meu espaço. Parecia sentir-se confortável, ultrapassando os direitos felinos aos humanos, sem lembrar de qualquer nível hierárquico. Mas, nada iria atacar o estado sublime em que me encontrava, afinal, tinha mais clima ler com uma brisa suave no rosto. Então fui para a sacada.
No caminho, ao ajustar algumas réplicas de Picasso, que estavam levemente declinadas na parede, pude identificar que Joana precisaria de uma conversa firme para se dedicar com maior atenção à suas produções domésticas.
Já na sacada, olhei brevemente para o horizonte, no meu exercício de meditação ativa. Em seguida, puxei o tatame junto à mesa que suportaria as notícias e continuei percorrendo os cadernos numa cumplicidade amigável com o jornal que assino. E de repente: “O ponto de partida regrediu”. Nem quis saber que ponto era aquele, porque estas coisas são irrelevantes.
Um caderno, outro, fui passando, num compasso acelerado de leads. Enfim, a sessão de horóscopo: “Leonino o universo conspira ao teu favor, aproveite bem o dia de hoje”. Era isso. A confirmação estava ali para quem quisesse ver.
Momentos antes de fechar o jornal, começou uma canção, que parecia entrar na casa invadindo a sala, vinha de fora, era a “canção para Elisa” de Beethoven. Avistei pela janela, o caminhão de gás estava passando e Joana chegando no mesmo ritmo. Fechei o jornal e me inspirei a caminhar.
Com o meu traje esportivo devidamente confortável eu iria para o Parque da Aclimação. Sim, combinava comigo ir para lá, o nome tinha “clima” e “ação”, o que traduzia o meu estado naquele dia.
Hoje lembro que estava tão equilibrado com meu bem-estar físico e mental que até esqueci de chamar a atenção de Joana por seus descuidos, quando a cruzei ao sair.
Atravessei a rua com cautela, protegido por toda a ciência do mundo e de quando em vez parava, afim de não desperdiçar todo o fôlego que tinha conquistado há décadas.
Ao dobrar a esquina da rua de casa, avistei o marceneiro, vizinho da frente. “E ai Rogério, tudo em cima?” Como uma pessoa pode fazer uma pergunta destas, de forma tão brega? “Sim, sim, tudo em cima”. Era verdade, mas qual era a pretensão factível daquela pergunta? Será que estava dizendo da minha barriga? Bem provável, mas, aquele sujeito que era marceneiro hás vinte anos, não merecia meus ouvidos.
A maioria das pessoas tem distúrbios invejosos. Raramente assumem suas posições de inferioridade frente ao mundo e isto era um fato. Enquanto caminhava, refleti um pouco acerca disso. Era o começo de tudo e eu nem imaginava.
Seguindo, fui atingido por um susto. O sinal estava verde e uma mulher demonstrou suas atuações cívicas arruinadas. Não me surpreendia o fato de ser uma mulher. Mas, nada iria abalar um humor atípico para um domingo, como o meu.
Mais adiante, um menino com um pacote de gomas de mascar, me parou. Quem poderia querer chupar qualquer coisa, vindo de alguém sem credibilidade? Há certos termos que são práticos. Ainda que clichês, funcionam certeiramente para momentos como estes. “Eu não tenho tempo” ou “Passa amanhã” são dois deles. Por falta de um, usei os dois ao mesmo tempo e continuei em frente.
Em alguns passos percebi que minha pele estava passando por uma ardência cutânea.
Havia esquecido o filtro solar. Mas, como sou prevenido, na minha bolsa tipo esporte fino havia um para casos emergenciais, que claro, era o melhor no ramo farmacêutico.
Me encostei em um poste para deslizar o creme em meu rosto, e quando abaixei para chegar até as pernas fui apalpado na parte traseira. Levei um susto. Quem estaria apertando minhas nádegas? Virei o rosto e vi um grupo de freiras passando, o qual uma se virou e lançou uma piscada, e num raio de tempo, entre se virar, agir e voltar, a mesma freira caiu em baixo de numa placa escrita PARE, fazendo com que todas se mobilizassem para socorrê-la.
Fiquei atrás do poste observando a cena. As freiras tentavam levantá-la e ela se mexia de um lado para o outro gritando que precisava se confessar. As mais velhas diziam que na verdade ela precisava de um médico, as mais novas procuravam o meu olhar escondido.
Olhei para a placa “PARE”, num raio de tempo parecido com o da freira que havia molestado a minha razão, também olhei para trás e fiz um sinal para o táxi que estava passando. “Vamos, vamos, me leve para longe daqui”. abaixei para me livrar daquela e ou de outra cena que poderiam vir, mas escutei o coro religioso feminino se utilizarem de palavras que agrediram minha moral.
Duplamente lesado, pedi ao taxista que corresse, e quando tive forças para levantar, o tempo devia ter passado uns cinco minutos, embora parecia ter se estendido excessivamente. Perguntei quanto havia sido a conta e ouvi uma voz feminina. Não era possível, o valor tinha ficado bem menos que cinqüenta reais, mas foi esta nota que entreguei a ela e pedi para descer.
A mesma, perguntou o que tinha acontecido com as freiras, enquanto pegava o troco. Eu disse que não sabia e que não precisava de troco. Mas, ela impediu a minha saída, trancando as portas automaticamente. Disse que era feminista e que exigia uma explicação. Esta, não quis saber o que tinha acontecido comigo. Comecei a sentir uma fraqueza, a vista ficou escura e desmaiei.
Quando acordei estava sentando uma lanchonete em frente ao parque. Havia uma água de côco em cima da mesa. Passei a mão na minha carteira para me certificar simultaneamente que estava tudo bem e fiquei ali um pouco para tomar ar e entender alguma coisa.
Já não lembrava da minha vontade de caminhar. Já não tinha mais vontade de coisa alguma. Fiquei ali, durante uma hora com a sensação de que algo poderia acontecer a qualquer hora. Algo desconhecido e ruim. Uma palavra me veio a mente: dogma. Não dou atenção a palavras que desconheço, mas pensei que da próxima vez iria trazer meu leptop portátil para consulta de palavras estranhas no software de dicionários.
Percebi que um risco tinha começado a se firmar. Uma força estranha que queria me ver por baixo. Mas, eu não desisto das coisas doa a quem doer e o universo iria ficar a meu favor

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